Por Everaldo Soares
O agente Morgan, da polícia local, encontrava-se frente a mesa da sala de estar, a cena era de um surrealismo fantástico, não menos misteriosa do que a carta endereçada ao sr. Albert. De modo sereno, Albert olhava gracioso para Morgan, um leve sorriso no rosto, enquanto jazia imóvel na cadeira rústica de almofada.
A mesa estava posta para dois; um candelabro, duas velas apagadas, uma garrafa de vinho, duas taças de cristais, pratos e alguns talheres.
Tudo parecia perfeitamente normal para a ocasião de uma comemoração, uma vez que Albert, sessenta e dois anos de idade, viúvo a mais de quatro anos, estava fadado a um novo encontro. Confidenciou isso a Catherine, sua fiel empregada e amiga.
Enquanto abotoava o seu melhor terno, dispensou a jovem mais cedo aquele dia. " me deseje sorte Catherine". Foram suas últimas palavras.
Tudo parecia normal, não fosse o fato mirabolante de que o sr. Albert estava morto naquela cadeira.
- Isso é muito estranho - pensava o agente de polícia confuso com o desfecho daquela carta, que por sinal, não possuía remetente algum.
Enquanto pensava, fora interrompido quando a porta da sala se abriu de repente, e passou por ela um dos policiais com Catherine, da qual tomava depoimento, e a sra. Clemente, uma moradora local.
- Sr. Morgan, esta senhora é vizinha de Albert, e gostaria de falar com o senhor. - Dizia o policial, que assim como Morgan, conjeturava a possibilidade de um suposto suicídio a princípio, mas depois mudaram de ideia. Não havia razões aparente para isso.
O agente de polícia, enquanto tomava nota de tudo, ouviu a sra. Clemente dizer que, pouco depois que Catherine deixou a casa no último sábado, viu o sr. Albert andar pelo quintal enquanto conversava sozinho. Não era a primeira vez, dizia ela, que Albert invariavelmente comportava-se dessa maneira. Num minuto, demonstrava-se invulgar, noutro, discorria sobre um assunto específico: ora sobre seu trabalho, ora sobre as coisas que Mackenzie dizia sobre ele. Eram longas horas de conversa, que para ela eram desconexas e não faziam o menor sentido, dizia a sra. Clemente. Depois de algum tempo falando sozinho, Albert teria entrado para dentro de casa, ria muito, num instante cessou de rir, depois tudo ficou em silêncio.
Catherine, ao contrário, assegurava que Albert era um homem sóbrio e inteligente, apesar de solitário. Não fazia sentido que ele hospedasse em sua casa um bando de quimeras, para dividir uma taça de vinho.
O agente Morgan estava incomodado com o caso incomum e, de seu ponto de vista, tinha vontade de fechar os olhos e encerrar o caso. Mas sabia que não podia. Então voltou-se intuitivamente para a jovem empregada, com a pretensão de exorcizar o mal entendido do espírito controvertido que pairava sobre a casa do sr. Albert.
- Catherine, encontramos esta carta no bolso do paletó de Albert, faz ideia de quem poderia ter escrito isso?
Catherine estendeu a mão e pegou a carta tomada de espanto.
- Uma carta!? Indagou surpresa. - Mas Albert não costumava receber ou enviar cartas. - Disse ela.
Explicou ao policial que o sr. Albert era um tanto ocioso, quando o assunto era correspondências. Ele preferia os caprichos da tecnologia moderna e dos eletrônicos.
Inquieta e confusa, tomou a carta nas mãos e sentou-se no sofá da sala. Logo notou que a letra era desconhecida, e o seu conteúdo um tanto rebuscado e confuso. Catherine pôs-se a ler a carta:
Caro amigo Albert, ou devo chama-lo de irmão? Bem sabes que nunca te abandonei desde o dia em que nascemos.
Era noite clara de verão como esta, o dia em que viemos para este mundo. Eramos filhos de pais perfeitos...eram mãos perfeitas que nos cobriam todas as noites frias do ano.
E foi em uma dessas noites que nos apercebemos, e nunca mais nos separamos um do outro desde então.
Durante noites sem fim, uma canção soprava como um vento calmo em nossos ouvidos até que um de nós viesse adormecer, depois seguia-se um silêncio que por si só era uma oração.
Tudo o que sabíamos, era que vivíamos cercados por pessoas boas... mais tarde, descobrimos que há mais mal no mundo, do que se possa medir. A Terra era um celeiro de maldade... seu legado é tirania.
Todas as manhãs, um raio de luz vermelho da aurora, tinge as calçadas por onde pés pesados passam todos os dias, indiferentes, onde há dor e solidão.
Dava para ler os pensamentos das pessoas nas ruas, como se olhássemos para um mural de avisos em suas cabeças.
Devo te dizer mais coisas... o barulho deste mundo está tirando o seu sono, a ponto de não se lembrar mais de mim. Por isso, vim por meio desta carta, porque quero te levar comigo para bem longe do mundo.
Mas antes, vamos brindar nossa despedida, quero te contar um pouco das coisa que aprendi. A vida não termina com o fim desta vida, e este mundo não é real como pensa, é apenas um sonho, e é a vida e não o sonho, que buscamos.
Devo te falar de outra coisa... no seio deste sono macabro, está uma juventude que não renuncia a sua meninice, mais tarde viram bandidos deploráveis, com direitos iguais ou melhores do que os justos que sonham com um mundo melhor.
Pareceu-me uma colocação apropriada, uma vez que as pessoas se apressam para chegarem em suas casas, e se trancafiarem dentro delas, como prisioneira de seus lares.
Há ainda uma última coisa que eu gostaria de dizer... eu me recuso a voltar a falar com Mackenzie, penso que ele presta um desserviço para pessoas como nós. Ele me acusa de uma porção de coisas que eu não tenho culpa, por isso você se afastou de mim.
Mas hoje eu voltei, meu amigo... vamos brindar a vida que nos espera.
Catherine terminou de ler e ficou perplexa com o conteúdo singular da carta. Enquanto divagava em seus pensamentos, o agente Morgan esperava de pé com as mãos cingindo a cintura, olhando para Catherine que balançava a cabeça negativamente sem compreender nada.
O médico legista, informou que testes preliminares constatavam morte por causas naturais. Não havia vestígios de envenenamento ou qualquer outro agente patógeno externo. O coração do sr. Albert parou subitamente de bater. Desta feita, veio a óbito.
O que mais impressionava, segundo o legista, era a aparente cumplicidade do sr. Albert diante das circunstâncias. Ele não insistiu em relutar, como fazem a maioria das pessoas, ao contrário, parecia estar em paz como se aguardasse a visita da própria morte.
O silêncio da sala foi quebrado com a voz de um homem de meia idade, que atravessou abruptamente a porta.
- Agente Morgan, - cumprimentou o policial, enquanto segurava na mão esquerda uma pasta de papéis - eu sou o dr. Mackenzie, vim imediatamente assim que tomei conhecimento do assunto por telefone, quando liguei para o sr. Albert pela manhã, e um oficial seu atendeu.
- Dr. Mackenzie! O nome do senhor consta na carta que Albert deixou - e entregou-a para o homem que pegou da mão de Morgan educadamente o manuscrito.
- Eu não preciso ler esta carta, agente, posso adivinhar o que está escrito nela. - Falou de modo seguro e tranquilo, o dr. Mackenzie.
Os presentes se entreolharam e esperaram que o outro se explicasse.
- Então... - o agente Morgan cruzou os braços - em que pode nos ajudar dr. Mackenzie? O que tudo isso significa? Inquiriu o visitante, não menos misterioso que o defunto em questão.
- Sou psiquiatra, e Albert era meu paciente a mais ou menos quatro anos. Ele me procurou logo depois que a esposa faleceu. - Explicou o dr. Mackenzie.
- Albert sofria de transtorno de múltipla personalidade. O sintoma se apresenta na mudança repentina de comportamento da pessoa, uma vez que a presença de duas ou mais personagens, assumem o controle do indivíduo.
- São personalidades distintas, com seus próprios anseios e desejos. São complexos autônomos do ponto de vista psicológico.
A sra. Clemente respirou ofegante, mas um tanto curiosa. Os demais ouviam atento a explicação do dr. Mackenzie.
- O tratamento ajuda, mas a doença é crônica e pode durar a vida inteira. Em se tratando de Albert, ele adquiriu a doença na infância, e não tinha problemas nenhum em lidar com ela.
- A esposa sabia que Albert tinha um amigo oculto, mas convivia bem com ambos. Afinal, foi ele quem ajudou Albert a ser o homem era.
- Mas de alguns meses para cá, Albert recusava a falar com seu amigo, queria ficar só, então ele começou a influenciar Albert a abandonar o tratamento, e fazia sérias acusações contra mim.
Catherine ouvia admirada, não tinha ideia de que o sr. Albert era portador de problemas psicológicos, nunca desconfiara de nada.
O agente Morgan interrompeu:
- Doutor, então o senhor quer dizer que esta carta foi escrita por...
- Esta carta, agente - interveio o dr. Mackenzie - foi escrita pelo próprio Albert... se é que o senhor me entende. - Disse o psiquiatra.
- Em seguida, o dr. Mackenzie entregou para Morgan uma pasta contendo o relatório clinico de Albert, dos últimos quatro anos. Depois despediu-se dizendo:
- Espero ter ajudado. - Morgan assentiu positivamente e agradeceu.
As pessoas iam saindo uma após outra da espaçosa sala. Catherine foi a última a sair, e quando deixou a casa com os olhos lacrimejando, acompanhava os paramédicos que levavam o corpo do sr. Albert numa maca. Ela então se lembrou das suas últimas palavras quando referiu-se a um encontro. Por fim despediu-se dizendo: boa sorte... Albert.
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