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segunda-feira, 5 de abril de 2021

Quando os sinos dobram por nós

 Por Everaldo Soares




Havia naquele dia algo de errado no mundo

Notei uma atmosfera de medo

Ouvi passos atrás de mim

E era a morte caminhando silenciosamente

Sob uma luz dourada que reluzia de algum lugar

Das janelas de algum prédio que eu não podia alcançar,

Dos corredores das enfermarias

Ouvi sua voz que dizia:

A morte é fluxo... a vida é mobilidade

A morte está para a vida assim como a

Correnteza na tempestade.

Pensei ainda que era melhor viver,

Enquanto um manto de cicatriz cobria a Terra.

E eram as feridas dos que partiram, 

E o pranto dos que ficaram.

Não diga nada - disse a morte - observe.

Há uma eternidade clara como o dia e escura como a noite,

Girando para baixo e para cima

Para cima e para baixo 

E que não se prende nem no presente nem no futuro.

Ninguém sabe dizer onde começa ou termina,

È a impermanência da vida... a morte.

Eu não disse nada, senti um medo terrível,

Ouvi depois um longo toque de recolher

Sobre a Terra,

O mundo havia se tornado um lugar perigoso.

Ninguém escapou do pesadelo da morte naquele dia,

Cada manhã descia com a mesma agonia da manhã 

Que antecedia.

As pessoas desesperadas fugiram no 

Cavalo de batalha de suas crenças,

Compreendi que os pesadelos não eram

Nem a metade do medo do mundo real - continuei observando.

A morte é fluxo... a vida é mobilidade - continuou a morte -

A banalidade de uma geração descende da

Banalidade de outra geração.

Muitos vivem como zumbis, se movem, respiram, mas não 

Tem humanidade,

Nem indagam sobre o sentido da vida - dizia ela.

A impensada capacidade de pensar

Levou muitos a acreditar que tudo o que reluz é ouro,

Construindo Templos reluzentes, para preencher o Vazio da crise existencial.

Criaram religiões

Inventaram doutrinas

Até perderem-se no pântano escuro de sua própria estupidez.

A voz cessou por um instante, e eu compreendi que 

Cada criatura é em si mesmo o seu próprio Templo e

Sacerdócio, juiz e sentenciado.

Compreendi o quanto os homens são como cães,

Presos na coleira de seu próprio ego.

Vem outros homens e atacam sua integridade,

Roubam os seus bens e tiram sua

Liberdade, e eles não fazem nada

Porque os cães esquecem facilmente a

Arrogância de seus donos. Eu estava perplexo.

Uma coisa atraiu minha atenção;

Uma aura de luz irradiou por toda a terra, e

Eram as orações daqueles que se curvaram respeitosamente

Diante do amor ao próximo.

A esperança tem o escudo radiante da fé - Disse me a morte -

È um território místico, uma pátria sem bandeira, 

Um navio fantasma com vozes que jamais serão 

Ouvidas por aqueles que não a detém.

Porque toda a esperança é revelada na vida,

Assim como toda a vida é revelada na morte

Porque toda morte é fluxo.

A luz dourada que reluzia no fim do túnel

Me convidou a entrar .Em algum lugar repicava um sino,

E uma voz  bem calma chamava por mim...

Então compreendi tudo.




everaldo.uni@gmail.com

















domingo, 21 de fevereiro de 2021

O Amigo oculto

 

Por Everaldo Soares





    O agente Morgan, da polícia local, encontrava-se frente a mesa da sala de estar, a cena era de um surrealismo fantástico, não menos misteriosa do que a carta endereçada ao sr. Albert. De modo sereno, Albert olhava gracioso para Morgan, um leve sorriso no rosto, enquanto jazia imóvel na cadeira rústica de almofada.


    A mesa estava posta para dois; um candelabro, duas velas apagadas, uma garrafa de vinho, duas taças de cristais, pratos e alguns talheres.

    Tudo parecia perfeitamente normal para a ocasião de uma comemoração, uma vez que Albert, sessenta e dois anos de idade, viúvo a mais de quatro anos, estava fadado a um novo encontro. Confidenciou isso a Catherine, sua fiel empregada e amiga.


    Enquanto abotoava o seu melhor terno, dispensou a jovem mais cedo aquele dia. " me deseje sorte Catherine". Foram suas últimas palavras.

    Tudo parecia normal, não fosse o fato mirabolante de que o sr. Albert estava morto naquela cadeira.

    - Isso é muito estranho - pensava o agente de polícia confuso com o desfecho daquela carta, que por sinal, não possuía remetente algum.

    Enquanto pensava, fora interrompido quando a porta da sala se abriu de repente, e passou por ela um dos policiais com Catherine, da qual tomava depoimento, e a sra. Clemente, uma moradora local.


    - Sr. Morgan, esta senhora é vizinha de Albert, e gostaria de falar com o senhor. - Dizia o policial, que assim como Morgan, conjeturava a possibilidade de um suposto suicídio a princípio, mas depois mudaram de ideia. Não havia razões aparente para isso.

    O agente de polícia, enquanto tomava nota de tudo, ouviu a sra. Clemente dizer que, pouco depois que Catherine deixou a casa no último sábado, viu o sr. Albert andar pelo quintal enquanto conversava sozinho. Não era a primeira vez, dizia ela, que Albert invariavelmente comportava-se dessa maneira. Num minuto, demonstrava-se invulgar, noutro, discorria sobre um assunto específico: ora sobre seu trabalho, ora sobre as coisas que Mackenzie dizia sobre ele. Eram longas horas de conversa, que para ela eram desconexas e não faziam o menor sentido, dizia a sra. Clemente. Depois de algum tempo falando sozinho, Albert teria entrado para dentro de casa, ria muito, num instante cessou de rir, depois tudo ficou em silêncio.


    Catherine, ao contrário, assegurava que Albert era um homem sóbrio e inteligente, apesar de solitário. Não fazia sentido que ele hospedasse em sua casa um bando de quimeras, para dividir uma taça de vinho.

    O agente Morgan estava incomodado com o caso incomum e, de seu ponto de vista, tinha vontade de fechar os olhos e encerrar o caso. Mas sabia que não podia. Então voltou-se intuitivamente para a jovem empregada, com a pretensão de exorcizar o mal entendido do espírito controvertido que pairava sobre a casa do sr. Albert.


    - Catherine, encontramos esta carta no bolso do paletó de Albert, faz ideia de quem poderia ter escrito isso?

    Catherine estendeu a mão e pegou a carta tomada de espanto.

    - Uma carta!? Indagou surpresa. - Mas Albert não costumava receber ou enviar cartas. - Disse ela.

    Explicou ao policial que o sr. Albert era um tanto ocioso, quando o assunto era correspondências. Ele preferia os caprichos da tecnologia moderna e dos eletrônicos.


    Inquieta e confusa, tomou a carta nas mãos e sentou-se no sofá da sala. Logo notou que a letra era desconhecida, e o seu conteúdo um tanto rebuscado e confuso. Catherine pôs-se a ler a carta:



    Caro amigo Albert, ou devo chama-lo de irmão? Bem sabes que nunca te abandonei desde o dia em que nascemos.

    Era noite clara de verão como esta, o dia em que viemos para este mundo. Eramos filhos de pais perfeitos...eram mãos perfeitas que nos cobriam todas as noites frias do ano.

    E foi em uma dessas noites que nos apercebemos, e nunca mais nos separamos um do outro desde então.

    Durante noites sem fim, uma canção soprava como um vento calmo em nossos ouvidos até que um de nós viesse adormecer, depois seguia-se um silêncio que por si só era uma oração.

    Tudo o que sabíamos, era que vivíamos cercados por pessoas boas... mais tarde, descobrimos que há mais mal no mundo, do que se possa medir. A Terra era um celeiro de maldade... seu legado é tirania.

    Todas as manhãs, um raio de luz vermelho da aurora, tinge as calçadas por onde pés pesados passam todos os dias, indiferentes, onde há dor e solidão.

    Dava para ler os pensamentos das pessoas nas ruas, como se olhássemos para um mural de avisos em suas cabeças. 

    Devo te dizer mais coisas... o barulho deste mundo está tirando o seu sono, a ponto de não se lembrar mais de mim. Por isso, vim por meio desta carta, porque quero te levar comigo para bem longe do mundo.

    Mas antes, vamos brindar nossa despedida, quero te contar um pouco das coisa que aprendi. A vida não termina com o fim desta vida, e este mundo não é real como pensa, é apenas um sonho, e é a vida e não o sonho, que buscamos.

    Devo te falar de outra coisa... no seio deste sono macabro, está uma juventude que não renuncia a sua meninice, mais tarde viram bandidos deploráveis, com direitos iguais ou melhores do que os justos que sonham com um mundo melhor.

    Pareceu-me uma colocação apropriada, uma vez que as pessoas se apressam para chegarem em suas casas, e se trancafiarem dentro delas, como prisioneira de seus lares.

    Há ainda uma última coisa que eu gostaria de dizer... eu me recuso a voltar a falar com Mackenzie, penso que ele presta um desserviço para pessoas como nós. Ele me acusa de uma porção de coisas que eu não tenho culpa, por isso você se afastou de mim.

    Mas hoje eu voltei, meu amigo... vamos brindar a vida que nos espera.


    Catherine terminou de ler e ficou perplexa com o conteúdo singular da carta. Enquanto divagava em seus pensamentos, o agente Morgan esperava de pé com as mãos cingindo a cintura, olhando para Catherine que balançava a cabeça negativamente sem compreender nada.

 

    O médico legista, informou que testes preliminares constatavam morte por causas naturais. Não havia vestígios de envenenamento ou qualquer outro agente patógeno externo. O coração do sr. Albert parou subitamente de bater. Desta feita, veio a óbito.

    O que mais impressionava, segundo o legista, era a aparente cumplicidade do sr. Albert diante das circunstâncias. Ele não insistiu em relutar, como fazem a maioria das pessoas, ao contrário, parecia estar em paz como se aguardasse a visita da própria morte.

    O silêncio da sala foi quebrado com a voz de um homem de meia idade, que atravessou abruptamente a porta.

 

    - Agente Morgan, - cumprimentou o policial, enquanto segurava na mão esquerda uma pasta de papéis - eu sou o dr. Mackenzie, vim imediatamente assim que tomei conhecimento do assunto por telefone, quando liguei para o sr. Albert pela manhã, e um oficial seu atendeu.


    - Dr. Mackenzie! O nome do senhor consta na carta que Albert deixou - e entregou-a para o homem que pegou da mão de Morgan educadamente o manuscrito.

    - Eu não preciso ler esta carta, agente, posso adivinhar o que está escrito nela. - Falou de modo seguro e tranquilo, o dr. Mackenzie.

    Os presentes se entreolharam e esperaram que o outro se explicasse.


    - Então... - o agente Morgan cruzou os braços - em que pode nos ajudar dr. Mackenzie? O que tudo isso significa? Inquiriu o visitante, não menos misterioso que o defunto em questão.


    - Sou psiquiatra, e Albert era meu paciente a mais ou menos quatro anos. Ele me procurou logo depois que a esposa faleceu. - Explicou o dr. Mackenzie.

    - Albert sofria de transtorno de múltipla personalidade. O sintoma se apresenta na mudança repentina de comportamento da pessoa, uma vez que a presença de duas ou mais personagens, assumem o controle do indivíduo.

    - São personalidades distintas, com seus próprios anseios e desejos. São complexos autônomos do ponto de vista psicológico.

    A sra. Clemente respirou ofegante, mas um tanto curiosa. Os demais ouviam atento a explicação do dr. Mackenzie.

 

    - O tratamento ajuda, mas a doença é crônica e pode durar a vida inteira. Em se tratando de Albert, ele adquiriu a doença na infância, e não tinha problemas nenhum em lidar com ela.

    - A esposa sabia que Albert tinha um amigo oculto, mas convivia bem com ambos. Afinal, foi ele quem ajudou Albert a ser o homem era.

    - Mas de alguns meses para cá, Albert recusava a falar com seu amigo, queria ficar só, então ele começou a influenciar Albert a abandonar o tratamento, e fazia sérias acusações contra mim.


    Catherine ouvia admirada, não tinha ideia de que o sr. Albert era portador de problemas psicológicos, nunca desconfiara de nada.

    O agente Morgan interrompeu:

    - Doutor, então o senhor quer dizer que esta carta foi escrita por...

    - Esta carta, agente - interveio o dr. Mackenzie - foi escrita pelo próprio Albert... se é que o senhor me entende. - Disse o psiquiatra.


    - Em seguida, o dr. Mackenzie entregou para Morgan uma pasta contendo o relatório clinico de Albert, dos últimos quatro anos. Depois despediu-se dizendo:

    - Espero ter ajudado. - Morgan assentiu positivamente e agradeceu.

    As pessoas iam saindo uma após outra da espaçosa sala. Catherine foi a última a sair, e quando deixou a casa com os olhos lacrimejando, acompanhava os paramédicos que levavam o corpo do sr. Albert numa maca. Ela então se lembrou das suas últimas palavras quando referiu-se a um encontro. Por fim despediu-se dizendo: boa sorte... Albert.






everaldo.uni@gmail.com

A Passagem

 

Por Everaldo Soares




    As ervas daninhas cresciam no quintal se espalhando por todo o jardim num Verde e fusco pálido. Isaque permanecia sentado numa rústica e velha cadeira de palha, enquanto passeava os olhos pelo álbum de fotografias da família. E em meio a recordações e saudades, fixou os olhos cansados como se o passado tivesse arrebatado do canto escuro da memória uma antiga lembrança animada.

    Parecia indiferente e apático, soltou uma tosse baixa e seca e esfregou os olhos. Rebeca, sua esposa, olhava para o marido debruçada sobre o anteparo da varanda próximo a porta da cozinha. Isaque ficara por demais velho, e o desejo de dar a vida um sentido, extinguiram-se nele agora. Ele olha para o jardim com desdém, um vento forte sopra por sobre a copa das árvores e folhas uivando numa melodia deprimente, como se cantasse uma canção de despedida.


    Rebeca, sua mulher, também ficou velha, e ela não pode fazer nada a não ser observar o marido que está sempre a fazer as mesmas coisas. Com isso eles viam os dias e anos que iam e vinham, chegavam e passavam, as vezes Isaque murmurava uma palavra sem sentido, era o máximo que podia fazer, depois adormecia sentado.

    Lá vai o velho Isaque, outro dia, caminha pelo estreito corredor da varanda. Numa das mãos trás um velho cachimbo, a outra levemente se apoia sobre um cajado torto de vara de bambu. Ele senta em sua cadeira como de costume e pega o álbum de fotografias desgastado pela ação do tempo, em seguida começa ociosamente a folhear suas páginas.


    Rebeca perdeu a conta de quantas vezes viu esta cena, Isaque não notara a presença da esposa porque tem uma doença degenerativa nos olhos por conta da idade. Ele se deteve numa fotografia em particular, um primo, há muito havia morrido porque certa manhã de quaresma caíra de uma mulinha e batera levemente com a cabeça, não era homem mais velho que Isaque e já partíra a meio caminho da mocidade.

    Rebeca lembrava o que dele diziam a seu respeito, perguntado se sobrevivera a queda, ainda sobre os pés do animal, ele respondeu com ar travesso "morre-se muito bem as seis ou sete da tarde". Tinha lido num livro. Ao cabo de algumas horas morreu.


    Quando em quando Isaque pensava sobre a sorte dos homens toda vez que lembrava do primo, embora na sua juventude vivera a vida em todo o seu esplendor, agora ela tornou-se um fardo... penosa. Ali estava Isaque, mergulhado em solidão profunda, levado por uma correnteza de estranhos sentimentos. Sussurrou uma palavra surda acenando o braço lentamente para a mulher que, supunha ele, havia de estar no mesmo lugar de ontem.

    Rebeca estava disposta a ouvir, fosse o que fosse, fizesse ou não sentido, porque Isaque andava meio caduco de uns anos para cá. Murmurou algumas palavras enquanto a esposa consentia positivamente com a cabeça na medida em que ouvia, depois deixou o cachimbo cair no chão e adormeceu. Rebeca recolheu o velho cachimbo caído e se retirou um pouco corcunda para dentro de casa.


    Alguns dias se passaram quando o sino da igreja soou, o sol deslizava sereno pelo céu e se aninhava por detrás do cimo. Na saída havia muita gente conhecida, Rebeca estava muito bem arrumada, mais do que de costume. Isaque ia na frente puxando o cortejo fúnebre.

    Lá vai o velho Isaque, antes de morrer fez a esposa jurar por céu e terra encurvada sobre sua velha cadeira que, neste dia, não derramaria uma única lágrima. A mulher consentiu. Isaque afigurava-se animoso e mais vivo, parecia que a paz veio a ter pessoalmente.


    Um dia Rebeca se achava sentada na cadeira rústica de Isaque, e folheava o álbum de fotografias da família. Uma fotografia em particular chamou sua atenção, eram Isaque e Rebeca no dia em que se casaram. Ela foi acometida de um sentimento estranho, fechou o álbum e entrou para dentro de casa, era quarta-feira de cinzas, um ano depois que Isaque havia partido. O sol deslizava sereno pelo céu num indo e vindo de uma eterna passagem.





everaldo.uni@gmail.com

O Manifesto

 

Por Everaldo Soares




    E aconteceu que naquela noite os telejornais anunciaram a criação de um novo partido, diziam que os antigos fracassaram lamentavelmente. Gregório, político bom e justo, protestou:

    - A cidade não precisa de outro partido, precisa de ver fazer valer as leis e promessas feitas pelos partidos vigentes, porque a lei não se aplica contra o descaso daqueles que fazem as leis, eles vivem à custa de contribuintes estarrecidos, pobres e oprimidos.

    Os discursos se repetiam, como se algum dia cessassem de se repetir, alguns de seus aliados mudaram de lado, outros ficaram divididos. O partido se fortaleceu, Gregório começou a olhar para ele como se olhasse uma jovem mulher. Por fim, ele próprio, ficou atraído pelo novo partido.


    E eu ouvia Willy, o apresentador lobo enquanto a chuva varria o telhado da velha casa, e o vento sacudia as antenas de vhf.

    Enquanto falava, sua imagem tremeluzia como um vulto, sua voz parecia um sussurro fantasmagórico. Então me lembrei do poeta que escreveu: "há de ter fé na palavra como um cão olha seu dono", e Willy estava diante de uma cidade que olhava para ele, toda vez que se punha a falar.


    Durante a noite, eu conversei sozinho, depois ordenei minha voz que calasse... sobreveio o silêncio... e a palavra quebrou o silêncio outra vez. E eu falei aquela noite inteira... estava sóbrio.

    Noutro dia, a cidade amanheceu agitada sobre os arranha céus, condomínios, campos e favelas. As pessoas iam e vinham pensativas, ninguém sabia em quem mais confiar.


    - Acho que não sei em quem mais acreditar - relatou-me um morador da vila, desempregado havia quatro anos. Depois saiu andando, aborrecido, melancólico, e conversava sozinho. Disseram mais tarde que tentou morrer.

    Mas o que se havia de fazer! As pessoas estavam desiludidas e enfraquecidas, talvez fosse melhor morrer.

 

    Sobreveio a noite, e eu rezava todas as noites antes de dormir. Porque era bom dormir, para não ouvir os murmúrios da cidade.

    Certa tarde cheguei em casa, eu me achava diante do espelho da sala. Pensava sobre os problemas que afligiam as pessoas, me lembrei do mendigo deitado na calçada perto dali, mais adiante outro mendigo... e mais outro. Escutei Willy, o lobo articulador, falando na Tevê:


    - Nos últimos anos, surgiu uma nova classe, e o índice de pobreza caiu significativamente. - Mas eu via miseráveis por toda parte.


    Um dia Willy reportava com falsa serenidade, num dos cantos sombrios da velha cidade:

   

    - Um garoto de dez anos estava a disposição do crime e morreu por quase nada, não tinha pai nem mãe. A morte será como uma mãe para ele agora. - E fingiu compadecer-se do menino.


    Depois eu ouvi uma voz incomum, vinha do meu subconsciente, e dizia:  a Terra, onde habita o homem, é um lugar muito estranho.

    Então eu disse: estou pronto para descer pelo poço, ninguém vai sentir minha falta. A voz continuou: a interação mutua entre os seres humanos está enfraquecida.

    Eu pensei que estava enlouquecendo. Novamente sobreveio o silêncio.

 

    Numa noite tranquila, eu caminhava pela vila, quando me deparei com um movimento luterano. De longe, uma voz conhecida proferia o seu manifesto...


    - O diabo esbarrou o pé nesta cidade senhores, - dizia o reverendo Josefo - e o pecado do demônio não se conta com o dedo das mãos. - Concluiu.


    A platéia escutava com avidez e eu acompanhava Josefo de olhos e ouvidos.

    - A corrupção corre como sangue venoso no coração desta cidade, penso que ela está infartando. - Depois advertiu:

    - Quando a ignorância é a dona do baile, ela dança com todos. "Sejamos astutos como as serpentes".


    Na manhã seguinte, deu início ao último debate entre os partidos antes das eleições. A imprensa local convidou Willy como moderador do discurso.

   

    Willy provocou um dos partidos quando esbarrou num assunto polêmico: insinuou que alguns de seus partidários apoiavam a 'reserva de mercado' no município, desviando o debate de seus propósitos, daquilo que o discurso deveria ser. A opinião pública ficou confusa.


    Falsas acusações extrapolaram o limite de paciência de membros de um dos partidos. O debate inflamou-se com palavrões, alguns políticos acusaram Willy de ser um militante de esquerda. A opinião pública ficou ainda mais confusa, era

bem verdade que para muitos o lado era o que menos importava.     Nos dias que se seguiram, vieram as eleições, e eu lembro muito daquele dia. As pessoas seguiram com suas vidas, queixosas, lamentando e praguejando. E tudo se repetiu...  como se algum dia cessasse de se repetir. 





everaldo.uni@gmail.com

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

 

O Ministério







Por Everaldo Soares



    Ao ser informado sobre um conselho realizado a 'portas fechadas' na Matriz, o vice tesoureiro queixava-se de fortes dores de cabeça enquanto se dirigia o mais rápido para lá. Ouviu falar do desaparecimento da quantia de dois milhões dos cofres do Templo.

    - Dois-mi-lhões - berrava o presbítero delegado a presidir o ministério, uma vez que o Ministro estava acamado e febril com a malfadada notícia.
    Pouco mais de uma dezena de membros da cúpula ministerial, ouviam o tom pouco pastoral das palavras que reverberavam na sala de audiência. Um dos missionários fazia comentários de forma arrogante e pretensiosa.
    - Estamos longe de fazer algum juízo de valor, até que os fatos sejam apurados. - Disse o superintendente.

    Naqueles dias, a matriz vinha recebendo a visita de homens importantes. Executivos... Contou o secretário.
    - O assunto merece interesse. - Disse o dirigente não menos sombrio do que seus colegas.
    Nada havia de novo, com o desaparecimento de verbas com superfaturamentos de manutenção, e serviços sociais. Com o correr do tempo, as coisas caiam no abismo do esquecimento, e não se falava mais no assunto.
    A notícia se espalhou com rapidez, os fiéis ficaram escandalizados e exigiam uma explicação. Dir-se-iam procurar até o fim do mundo.

    Dias depois, abriram investigação no mais completo sigilo, planejavam descobrir quem foi. O fato aconteceu do nada, como acontece a maioria das maiores desgraças, e o templo inteiro ficou abalado.
    Alguns acreditavam que se tratava de uma conspiração para derrubar o ministério, e se ocupavam em pensar nisso o tempo inteiro, outros esperavam que o nevoeiro de dúvidas passasse, tão logo quanto surgiu.
 
    - Não chegaram a um denominador comum - comentou um professor dominical com um colega. Ostentava uma fisionomia triste, e pelejava afugentar a desconfiança que recaíra sobre o tesoureiro do templo.
    - Não chegaram... - disse. Depois saiu para refletir sobre o assunto, na mais completa solidão.

    - Veja o caso, - dizia o dirigente para o ministro - contra o acaso falam as coincidências.
    Dizia a respeito de rumores de que alguns membros do ministério, cobiçavam a carreira política. Por algum tempo, discorreram sobre os perigos futuros que ameaçavam a administração do templo.
    As evidências eram tão impalpáveis, quanto o vento ao redor de suas cabeças. O assunto foi tão comentado que até virou piada nas páginas dos jornais, e para desgosto do ministro, o chefe da tesouraria, um antigo parente, há muito fora vice-prefeito numa cidadezinha interiorana do estado.

    Auxiliares e cooperadores iam e vinham como formigas ocupadas, logo se levantaram contra o dirigente.
    - Quanto mais longe se vai... mais inalcançável e distante tudo fica... e a verdade pode estar debaixo do próprio nariz. - Falou um deles.
    Alguns membros do ministério Perpetraram um plano:
    - Vamos pedir um sinal, - disseram - não nos é lícito questionar os sinais.
    Na terceira noite todos tiveram um sonho, e eles se puseram a falar deles... primeiro o ministro.
    Ele se pôs de pé, estava confuso com o sonho, deixou escapar um suspiro... diz ter sonhado com o presbítero despencando do alto da sacada do templo, junto ao corpo, uma carta explicara o motivo do suicídio. Mas foi incapaz de explicar o sentido simbólico do sonho.

    Depois foi a vez do dirigente que, segundo, sonhara com o tesoureiro saindo para uma vigília no campo, e estava metido até as orelhas num poço de areia movediça, enquanto suplicava por ajuda. Também não pode traduzir o sonho.
    Um missionário relatou ter sonhado com Judas Iscariotes enforcando o ministro com a própria gravata, porque estava entediado com o ministério. Mas não deu garantias de seu sonho, nem tampouco sabia seu significado.

    Um sonho sucedia outro sonho, e de sonho em sonho a realidade se mostrou indispensável. Embora ninguém pudesse explicar, esperava-se a qualquer momento um sinal. Alguns membros importantes, patrocinadores da causa do templo, vieram procurar o ministro, e não era outra coisa senão o assunto em questão. Dali foram ter com o presbítero, depois com o dirigente.
    - Talvez quem sabe tratar-se-ia de um oportunista, cuja a mão, a sorte afortunada veio apertar. - Dizia um deles.
    - Permita-me dizer que este templo tornou-se um instrumento diabólico. - Disse outro.
    Naturalmente, umas quantas mais perguntas haveriam de ser feitas, o ministério estava na mira dos olhos atentos dos fiéis, que disparavam acusações contra todos. Um desentendimento instalou-se dentro da tesouraria do templo, levando o tesoureiro a ter um colapso nervoso. E eis o que seria de sua vida... morreu de morte repentina.

    Com efeito, a morte causou perplexidade em todos, ainda mais quando boatos circulavam que Deus levara a alma do pobre infeliz, como um sinal de maldição que se abateu sobre o templo. Alguns se convenceram da malfadada história, enquanto outros presumiam uma maquinação dos sonhadores de plantão.
    Então deram por concluído o caso, convencidos por uma ideia distorcida da vida, onde ali, o sonho reina majestoso à quem lhe deseja pedir favor. Nem mesmo a consciência reclama seu sono, nada mais foi sonhado depois daquele dia, fora dito ali que não cabia a eles desprezarem os sinais, lembrou um Diácono.
    Tempos mais tarde só existia uma pálida lembrança do que havia acontecido. E, lá, continuam a vender esperança, com o correr do tempo as coisas cairiam no abismo do esquecimento, e não se falaria mais no assunto... nunca mais.

 

O Céu que nos Protege


Por Everaldo Soares




    O céu se partiu com as luzes de fogos de artifícios, anunciando a chegada de um novo ano. O barulho despertou os moradores das casas, dos edifícios e condomínios de luxo, até os cantos mais longínquos e esquecidos aonde os olhos já não podiam mais alcançar. Salvo o acaso lembrasse das ruas esburacadas nos subúrbios e favelas, por onde transitavam andarilhos e mendigos com suas velhas carroças de papelão e latas de cervejas vazias.

    A confusão e a buzina dos carros despertou Basílio, um morador de rua que dormia preguiçosamente sob o alpendre da igrejinha Santo Antônio de Pádua, num bairro ali próximo.
    A noite era de muito falatório e fumaças de cigarros, Basílio pôs-se de prontidão de pé em frente da igreja enquanto olhava o movimento na praça. Tinha uma barba extravagante e um traje em farrapos, parecia de longe um sumo-sacerdote da miséria em pessoa. Ele estava sozinho, porque seu melhor amigo era seu cachorro e o abandonou por causa do barulho dos fogos.  Dizem, não sem razão ou motivos, que nunca se viu nesse mundo, um pobre andarilho que não tivesse um cão que vivesse da caridade de seu dono. O que faz do mendigo seu senhor.

    Já pela manhã bem cedo, Basílio ficara curioso com o movimento na avenida principal. Estava admirado com o luxo das caravanas, os enfeites das árvores e as pessoas bem vestidas. Uma multidão se vestia de roupas brancas, iam se amontoando como bolas de neve sentadas umas sobre os ombros de outras com garrafas de bebidas nas mãos, pessoas por metros, pessoas por quilômetros, e como se não bastasse iam deixando para trás mesas fartas de restos de comidas intocáveis para serem mais tarde, jogadas no lixo.

    Para Basílio, a fome era uma inimiga que devia ser vencida com a paciência, ela ataca ao meio dia, a meia noite e, com gestos nobres de alguns bons cidadãos de velhas tradições, podia se confraternizar muito bem com uma boa lata de lixo com um pouco de sorte. A fome é uma coisa que para muitos, nem de longe passaria pela cabeça o que seja. Mas ele sabia.

    Basílio não dominava a arte de ler ou escrever, os jornais eram para ele nada mais do que cobertores improvisados. Sendo analfabeto, não entendia a sociedade nem conhecia seus representantes, assim como não tinha religião. Ademais, para Basílio, a política e as religiões, assim como de Deus e o diabo "só tinha ouvido contar histórias". Ouvira isso uma vez no orfanato onde fora deixado aos seis anos de idade pela mãe, que tinha uma doença terminal. O pai morrera vítima de um assalto, o criminoso tinha dezesseis anos. Sua família e seus conhecidos, eram seus companheiros das ruas, eram vultos de homens e mulheres maltrapilhos que iam e vinham depois de percorrerem léguas, por ruas, estradas e caminhos, conduzidos pelo instinto de sobreviver e voltar a ser mendigo mais um dia.

    Ao contrário da sociedade civilizada, onde a primeira vista as pessoas eram normais, mas não se sabia por qual motivo, alguns a vista dos problemas, impelidos por uma visão distorcida da vida, se lançavam de altos edifícios para a morte certa. Outros se jogavam de pontes e viadutos. Ao contrário dessas pessoas, esses habitantes insignificantes reservaram sua morte para o último dia de suas vidas.

   Era uma manhã de outono e uma brisa fria cobria tudo ao redor, Basílio acordou num banco da praça atacado de uma moléstia, uma intoxicação causada pela ingestão de comida estragada. Um transeunte avisou a secretária da igreja a vista da situação que se encontrava o pobre homem ali.
    Nas ruas, as pessoas caminhavam apressadas e preocupadas em resolver toda a sorte de imprevistos que nunca foram resolvidos e que nunca faltariam amanhã. O vento frio diminuía, e Basílio - pobre diabo - ia ficando cada vez mais irreconhecível, os ruídos dos motores iam ficando cada vez mais baixo para ele, a noção de tempo se perdia, suas vistas escureciam até que perdera a consciência.

    Tempos depois se ouviu um leve passo de botas na calçada e a porta de um carro se abriu e Basílio fora colocado em seu interior. A batida da porta cortou a praça e atravessou a igreja e o veículo desceu as ruas movimentadas até desaparecer. Basílio permanecia em silêncio, cada segundo... cada minuto.
   
    Ninguém mais o viu depois desse fatídico dia, seu vulto surdo-mudo desapareceu da multidão, das praças, das ruas. Os jornais não davam notícias dos mendigos, como falavam de horóscopo e meteorologia. No entanto, um inciso pronunciamento da Câmara dos vereadores, ponderou o assunto num certo momento. E o assunto não era outro, senão os males que afligiam os moradores das ruas e favelas. A comissão de direitos humanos também estava de prontidão, tudo isso a mais de meio caminho das eleições.

    "Os indigentes e viciados são, de certa maneira, uma responsabilidade social e devemos tratar deste mal", disse um renomado político de modo vulgar e carismático, o que atraía mais ainda a atenção de seus eleitores. "Não basta ser um bom político, há de ter de vencer os demônios", dizia um diácono pentecostal enquanto vendia seus versos para uma multidão de fiéis. Parecia que ambos estavam determinados a promover a felicidade do povo, cada um a sua maneira. Ou esmagando as pessoas em nome de suas crenças, ou escravizando-as com palavras e promessas como se só para isso tivessem nascidos, como se só para isso tivessem vivido cada segundo... cada minuto. Cada um encerrado em si mesmo, como mendigos na multidão.

 

Noite Breve e Delírio


Por Everaldo Soares



   
Brandon entrou em casa exaltado, trancou a porta e se dirigiu para a cozinha, onde Jéssica, sua esposa, brincava com o pequeno Peter. Era o primeiro filho do casal e tinha pouco mais de dois anos de idade.
    Ele saltou sobre o garoto como se agarrasse uma bola de futebol, depois ergueu Peter acima da altura dos ombros, e olhou para o filho com um brilho peculiar nos olhos.
    - Brandon...! Tome cuidado com o menino - dizia Jéssica - lembre-se que Peter está em tratamento, e devemos ter o máximo de cuidado com ele.

    O pequeno Peter era o centro das atenções da família Monroy. O pai, empresário publicitário, e devoto assíduo do trabalho, agora dividia seu tempo entre a família e os negócios
    Uma das razões era que Peter, desde que nascera, tinha uma longa agenda de fisioterapia respiratória. Isso tomava boa parte do tempo do casal que, ambos, juntos participavam das sessões na maioria das vezes. Brandon chegou a parar de fumar em favor do progresso de recuperação do filho.
    Rara as vezes que Brandon não conseguia compartilhar com Jéssica as sessões de fisioterapia, por razões profissionais.
    Momentos depois Brandon já estava sentado no sofá da sala, com Peter no colo assistindo Tevê. Mera coincidência, o canal transmitia um documentário cientifico.
 
    - Bem-vindo ao maravilhoso mundo de fantasias Peter. - Disse num tom jocoso para provocar a esposa que, apesar de não ser tão letrada como o marido, amava a ficção e o realismo fantástico.
    Ora, ora, - dizia Jéssica dirigindo-se para o marido - não é necessário dizer aqui que as coisas que existem neste mundo, existem por existir, e não necessariamente porque alguém acredita que elas existem.
    - Você acredita em Deus Brandon? - Perguntou ela.
    - É claro. E você sabe disso. - Ele se mostrou um tanto resignado com a pergunta da esposa.
    - Pois bem, acredite, é bastante improvável que se leve Deus para um laboratório de pesquisas, e prove a sua existência por métodos científicos materiais, como fazem os materialistas.
    Apesar do ceticismo, Brandon admirava a mulher que, para ela, o estranho não era estranho, era só desconhecido, assim como as ondas de rádio foram um dia, e hoje deixaram de ser. Ocorreu a ele, lembrar que Jéssica costumava dizer que, a maior doença do século vinte um era o consumismo. A única coisa estranha para ela, era ver pessoas tomando decisões erradas sob pressão da publicidade e propaganda, e comprando coisas desnecessárias, para depois se lamentarem como Madalenas arrependidas.

    Brandon tentou convencer a esposa a trabalhar com ele depois que o filho se recuperasse, mas ela recusou, disse que queria seguir a carreira do pai, e iria terminar a faculdade de biologia.
    O pai, biólogo e pesquisador, também estudara arqueologia na juventude, Jéssica passava a maior parte do tempo em sua modesta biblioteca, e cresceu lendo H.G. Wells, Jùlio Verne, Planck e Einsten.
    A física quântica, ali há mais coisas estranhas do que Jéssica possa imaginar, pensava Brandon, universos paralelos, linhas de tempo...os cientistas tem teorizado teorias e mais teorias...e por fim, caem em paradoxos inexplicáveis. Mas a esposa insistia e Brandon apoiava em tudo o que ela fazia.
    Certo dia Jéssica deslocou o ombro na garagem de casa quando descia pelas escadas e caiu. Brandon não permitiu que a esposa dirigisse até que se sentisse melhor, então ficou mais ausente do trabalho.

    Numa tarde, o telefone tocou no escritório da empresa, Brandon estava numa reunião importante, com clientes importantes. Jéssica disse que estava tudo bem e insistiu para que o marido continuasse com o trabalho, e que estava em condições de dirigir. Ele pediu desculpas para os clientes e disse que tinha assuntos de família para resolver, e saiu educadamente.
    Na outra semana ocorreu o mesmo episódio, mas Brandon estava lá. Com um gesto sutil ele pegava Peter nos braços, não queria piscar os olhos com medo de perder o filho de vista. Havia tanta inocência naquele sorriso, que valia a pena largar tudo para estar ali.
    E com isso as horas... os dias... e os meses iam passando, e Brandon e Jéssica aceitaram seus destinos, e Peter ficou curado. O pai que não bebia, bebeu de tanta felicidade naquele dia, depois balbuciou algumas palavras e dormiu com o filho nos braços.
    E assim, o tempo passou, e a medida que o tempo passa...para lá caminha os anos... e Peter tinha dezesseis anos.

    Era tarde da noite de sexta-feira, e Brandon se achava ainda no escritório, os funcionários já haviam ido embora. Ele permanecia na frente do computador finalizando algum trabalho importante. Lá fora, além das janelas, um vendaval terrível sacudiam os fios de alta tensão, chovia muito e os trovões eram assustadores.
    Então Brandon resolveu ligar para a esposa e dizer que iria se atrasar um pouco. Desta feita, concluiu o trabalho, fechou o escritório e se dirigiu para o estacionamento de carros.
    No caminho para casa, Brandon estava absorto entre uma ideia e outra, uma agitação começou a apoderar-se dele, talvez fosse a tempestade, não sabia. Quando virou uma das esquinas da cidade, não muito longe do trabalho, um relâmpago intenso explodiu a poucos metros de seu carro.
    Sem motivo aparente o carro apagou as luzes, e o motor parou de funcionar, instantes depois, ele estava com o veículo parado em frente a um supermercado, com os vidros do carro todo fechado. A chuva e o vento avançavam espantosamente, ele tentou usar o aparelho celular mas estava completamente apagado, não havia ninguém na rua, ele olhou para o relógio de pulso os ponteiros estavam parados indicando meia-noite.

    A cidade parecia um deserto vazio, enquanto pensava em como avisar a mulher, o carro estremeceu com o impacto de um pequeno outdoor que atravessou o para-brisa dianteiro, e por pouco não o atingiu. A chuva e o vento frio invadiram o interior do veículo, obrigando Brandon a buscar abrigo sob a cobertura escura de um velho armazém.
    O nervosismo cedeu lugar a um susto repentino, quando ele viu o vulto de um homem. Não tinha meios de vê-lo com muita clareza, mas a medida que seu olhos foram se acostumando com a escuridão, viu que se tratava de um mendigo deitado no chão áspero e sujo. Do seu lado, um cão magro e algumas latas de lixo lhe faziam companhia.
    O vento soprava cada vez mais frio, então ele resolveu se acomodar atrás do que parecia ser um contêiner de recicláveis, sentou ali com a cabeça sobre os joelhos, não havia nenhum perigo, apenas a modesta companhia de um andarilho e seu cão fiel.
    Um pensamento sussurrou na cabeça de Brandon, dizia ter vagas recordações do lugar onde estava, mas isso tinha pouca importância agora. Permanecia sentado... os olhos fechados... alheio... silencioso.

    - Um brinde a Mag...
    Brandon despertou assustado com o mendigo, não parecia estranho o som da voz do homem que ele jurava nunca ter visto.
    - Um brinde a Mag meu amigo... e um feliz natal.
    O mendigo agora sentado, segurava na mão uma garrafa de bebida e estendia os braços para Brandon, como se o convidasse para um drink. Ele tinha a impressão que o outro estava embriagado, mesmo assim agradeceu o pobre homem que, de certo, confundira Brandon com algum morador de rua. Talvez quisesse conversar, por isso fez um comentário qualquer.
    - Há caminhos largos e estreitos, mas todos.. todos correm para o mesmo horizonte.
    Disse o mendigo por fim, sua voz era fraca e seu corpo tremia, mas Brandon podia ouvi-lo com uma clareza cristalina. Julgou que o pobre coitado estivesse delirando. Ele continuou:
    - O chapéu era mais importante do que a própria cabeça, e foi levado pelo vento no caminho.
    Dizia o mendigo de semblante taciturno. Virou a garrafa de bebida na boca, depois a segurou entre os joelhos e calou-se.
    Brandon olhou curioso para o homem maltrapilho à sua frente, antes mesmo de perguntar foi interrompido.
    - A alma é triste se escolhe um caminho triste.
    Voltou a beber e continuou a dizer coisas sem sentido, ou talvez fizesse algum sentido para ele próprio. Seguiu um minuto de silêncio, depois voltou a falar:
    - Quanto mais avançamos pelo caminho, há mais pedras para se retirar... pedras que nós mesmos colocamos lá.
    Brandon quebrou o silêncio movido pela curiosidade.
    - Por que está me dizendo estas coisas senhor? Eu não entendo o que quer dizer.
    - Estou reescrevendo uma história - replicou o mendigo.

    A abordagem da linguagem era coisa comum na vida e no trabalho de Brandon, uma vez que ele próprio vivia da comunicação e interação entre pessoas. Tentou uma conversa animada com o seu interlocutor, mesmo acreditando que o outro estava acometido por uma demência, promovida pelo uso excessivo de álcool. Perguntou sobre a natureza da história, e que podia confidenciar à ele, se assim desejasse.
    - Era uma história de amor, ah, esqueça isso meu caro. É fato que ele já nem sabe mais o que é amor.
    Assim que terminou de falar, voltou a beber.
    - Quem era esse homem... ele tinha um nome?
    O mendigo olhou indiferente para Brandon, depois respondeu num tom de protesto.
    - A vida faz pender o braço da balança para o lado da morte - disse levando a garrafa na boca, depois continuou - sobre os ombros da vida, repousa a morte, é tudo o que eu sei.

    Ele tinha a certeza, de que o pobre mendigo era mais uma simples alma desprovida de razão, isso explicava a estranheza de seus sentimentos e palavras.
    - A razão não pode explicar tudo o que acontece no mundo, meu amigo.
    Ficou surpreso com a afirmação do homem que parecia ler seus pensamentos. Tentou falar mas foi outra vez interrompido com uma pergunta.
    - Você joga cartas? ou...talvez...
    Abriu uma das mãos e mostrou o que parecia serem dados de brinquedo.
    - Não senhor, eu não gosto muito de jogos. - Explicou.

    Ele titubeou até Brandon e parou bem à sua frente, tinha o olhar intenso e penetrante, assim como o olhar de Brandon. Sentou bem próximo dele. Havia algo nele que sem dúvidas chamava a sua atenção, sentiu um estranho estado de espirito, mas não sentia medo. Apenas ouvia um sussurro delirante e sutil, que emanavam das palavras daquele homem.
    - Não tem importância - disse o mendigo - a vida é um jogo meu amigo. As cartas estão viradas para baixo e os dados são lançados para cima.
    - A vida considera todas as possibilidades, não há cartas nem avisos, só escolhas certas ou erradas a fazer.
    - Mag veio ter comigo um dia, e me perguntou o que eu pensava sobre ela sair sozinha para dirigir. Não dirigia muito bem, na verdade era muito insegura.
    Falava encarando Brandon que o encarava de volta, absorto em pensamentos.
    - Eu deixei que Mag escolhesse, caso mudasse de ideia, ligasse para mim em meu escritório.
    Brandon ouvia o misterioso mendigo, que trazia nas mãos o que parecia ser um velho jornal. Havia ali, guardado em suas páginas, edições antigas de poesias, tratados de casamento, funerais, e notícias obscuras de outros tempos passados.
    - Aqui, - dizia o homem - neste diário amassado, está o nome de quem você pergunta. E quem era ele? Era aquilo que as palavras dizem o que foi, nada mais.
    - Vê este jornal, meu amigo, - folheou algumas páginas - há mais propagandas aqui do que assuntos relevantes. Elas são como cercas de arame farpado. Mag costumava dizer que chega a ser como feitiço, para quem se deixa enfeitiçar por elas, e todo feitiço um dia se volta contra o feiticeiro.

    Por um momento Brandon concebeu um breve pensamento infeliz, quando viu um dos anúncios comerciais, um entre cinco anúncios numa mesma calçada, debruçado sobre seu carro. Parecia coincidência, levando em consideração as palavras do mendigo.
    - São letras, cores e símbolos, e lâmpadas halogenas. Mas estão sempre lá para iludir pessoas. - Dizia o pobre homem.
    Ele foi para junto de Brandon e sentou ao seu lado, colocou o jornal entre as pernas e ascendeu um cigarro. Em seguida colocou a caixa de fósforos no chão, junto a garrafa de bebida.
    - Quem era Mag? Inquiriu Brandon, curioso.
    - Mag saiu de carro com o filho para ir comprar um Hambúrguer na avenida central.
    - E o que tem de errado nisso?
    - Tem um palhaço amarelo de cabelos vermelhos na hamburgueria.
    - Um o que... ?! - Brandon não entendia a resposta embaraçosa.
    - Todas as crianças amam o palhaço amarelo... mas o palhaço está pouco se lixando para elas. Nada há para ver ou ser visto nele, é apenas um palhaço que gosta de enganar crianças. - Calou-se novamente.

    Brandon ponderou um instante sobre o que acabara de ouvir. Olhou bem para o homem de rosto coberto pela espessa barba, e cabelos longos e negros, não o reconheceria por mais que tentasse.
    Quase desvanecido, o mendigo ainda podia ser ouvido, e sua voz era clara e serena.
    - Falei muito tempo, e você nem sequer perguntou de onde eu venho, ou meu nome. Sem que houvesse tempo para uma resposta, ele continuou seu discurso.
    - Nem de um lugar nem de outro, nem de buscar liberdade, nem alegria, nem de renunciar qualquer aflição deste mundo. E quanto são os mundos... e o mundo que me espera, como será? Não vale a pena sair correndo por ai, numa maratona sem linha de chegada.
    - Apenas peregrino por esta ou aquela cidade, e sei que percorro sempre os mesmos caminhos, as vezes solitários.

    - Mas é preciso caminhar... nada há para temer no caminho, pois quem habita as areias paradas deste deserto, são os ventos que assentam a poeira suja sobre meus pés. De quando em quando, uma brisa forte faz esvoaçar o chapéu que é levado pelo vento.
    Assim que terminou de falar, ficou em silêncio absoluto, com a cabeça pendida sobre um dos ombros... incapaz de dizer uma única palavra.
    Brandon fitou o pobre coitado por um tempo, depois tomado de uma curiosidade espantosa, pegou cuidadosamente o jornal no colo do mendigo adormecido. Começou a virar as páginas amassadas, mas não conseguia enxergar uma letra sequer.
    Riscou cautelosamente um fósforo e leu: 'vinte e quatro de dezembro de 2003, quinta-feira'

    Por que alguém guardaria um jornal por tanto tempo? Brandon se perguntou enquanto riscava outro palito de fósforo. Continuou folheando até o relatório policial. A polícia informou que nesta quarta-feira 23, a dona de casa Mag... (...) a frase estava ilegível. Continuou lendo:...de vinte e oito anos , foi encontrada morta dentro de seu veículo na avenida central da cidade. Testemunhas alegam que ela perdeu a direção e, fatalmente, bateu contra um poste de iluminação. O filho de pouco mais de três anos que estava com ela, chegou a ser socorrido e levado ao hospital mais próximo, mas não aguentou os ferimentos e também morreu.

    Brandon continuava a revirar as folhas e, de repente, percebeu que eram dois jornais. Abriu uma das páginas como se abrisse uma caixa de pandora, por onde seus sentimentos mais obscuros pudessem escapar. As palavras desbotadas assombravam o espírito de Brandon enquanto ele lia... Publicitário conhecido foge de clínica psiquiátrica no quinto mês de internação. A família de Brandon Monroy disse que depois da morte da esposa, Magda Monroy, e de seu filho, Peter, em dezembro do ano passado, Brandon teria fechado a empresa e começou a beber compulsivamente.
    A mãe do empresário contou que Brandon era um pai dedicado e amava muito a esposa. Ele não aceitou a perda da família, e se entregou à bebida e às drogas. Teria sido internado contra sua própria vontade, segundo amigos. Depois de conseguir fugir, ele nunca mais foi visto, a família cogita a possibilidade de suicídio, mas até agora a polícia nunca confirmou essa informação.

    Brandon sentiu a ausência total de forças nas mãos, o jornal caíra ao lado dele, depois seguiu-se um silêncio acompanhado de pavor. Os pensamentos cederam lugar a um vazio, como se aquilo fosse um sinal de aviso.
    De repente ele chora e grita o nome de Jéssica e Peter, enquanto ouve uma voz na cabeça. A voz chama por Brandon, entre sussurros e silêncio ele ouvia seu nome se repetindo como num gravador. A voz passou para seus ouvidos e soava cada vez mais forte... sempre chamando por Brandon.
    Subitamente foi despertado com uma mão tocando seu ombro, e uma voz gritando: -Brandon... Sr Brandon!!!
    A tênue luz da manhã se fez revelar, e ele viu um policial agachado sobre os calcanhares na sua frente, um outro estava de pé e falava no rádio. Aos poucos, foi percebendo o movimento de pessoas e carros passando.
    Reparou que estava sentado na frente de uma loja de veículos, e estava muito confuso.
    - Sr. Brandon, - dizia o policial segurando os documentos de Brandon nas mãos - sua esposa registrou queixa de seu desaparecimento nesta madrugada, logo depois da meia noite. Aquele carro é do senhor?
    Disse apontando para o veículo com um painel caído sobre seu para brisa. Ele olhou para os lados e não viu o mendigo, nem seu cão, nem latas de lixo. Estava só, sentado no chão de granito com as costas apoiadas numa das vitrines da loja. Ele olhou para o policial e assentiu positivamente.

    - Venha conosco senhor, - disse o policial ajudando ele a se levantar - talvez tenha que dar uma passadinha na delegacia antes de ir para casa. Eu entendo que há dias em que bebemos e perdemos a hora, quando não a casa. - Disse o outro insinuando que Brandon estivesse bêbado.
    - O que eu não entendo, - continuou - foi ter passado três vezes nesta mesma avenida, e não ter visto esse carro nestas condições.
    Seguiram pela calçada e Brandon insistia em olhar para trás a procura de um mendigo e seu cão, mas não havia mais nada ali, só uma sensação estranha, misturada com a sensação feliz de ir para casa... e rever a família.