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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

 

O Ministério







Por Everaldo Soares



    Ao ser informado sobre um conselho realizado a 'portas fechadas' na Matriz, o vice tesoureiro queixava-se de fortes dores de cabeça enquanto se dirigia o mais rápido para lá. Ouviu falar do desaparecimento da quantia de dois milhões dos cofres do Templo.

    - Dois-mi-lhões - berrava o presbítero delegado a presidir o ministério, uma vez que o Ministro estava acamado e febril com a malfadada notícia.
    Pouco mais de uma dezena de membros da cúpula ministerial, ouviam o tom pouco pastoral das palavras que reverberavam na sala de audiência. Um dos missionários fazia comentários de forma arrogante e pretensiosa.
    - Estamos longe de fazer algum juízo de valor, até que os fatos sejam apurados. - Disse o superintendente.

    Naqueles dias, a matriz vinha recebendo a visita de homens importantes. Executivos... Contou o secretário.
    - O assunto merece interesse. - Disse o dirigente não menos sombrio do que seus colegas.
    Nada havia de novo, com o desaparecimento de verbas com superfaturamentos de manutenção, e serviços sociais. Com o correr do tempo, as coisas caiam no abismo do esquecimento, e não se falava mais no assunto.
    A notícia se espalhou com rapidez, os fiéis ficaram escandalizados e exigiam uma explicação. Dir-se-iam procurar até o fim do mundo.

    Dias depois, abriram investigação no mais completo sigilo, planejavam descobrir quem foi. O fato aconteceu do nada, como acontece a maioria das maiores desgraças, e o templo inteiro ficou abalado.
    Alguns acreditavam que se tratava de uma conspiração para derrubar o ministério, e se ocupavam em pensar nisso o tempo inteiro, outros esperavam que o nevoeiro de dúvidas passasse, tão logo quanto surgiu.
 
    - Não chegaram a um denominador comum - comentou um professor dominical com um colega. Ostentava uma fisionomia triste, e pelejava afugentar a desconfiança que recaíra sobre o tesoureiro do templo.
    - Não chegaram... - disse. Depois saiu para refletir sobre o assunto, na mais completa solidão.

    - Veja o caso, - dizia o dirigente para o ministro - contra o acaso falam as coincidências.
    Dizia a respeito de rumores de que alguns membros do ministério, cobiçavam a carreira política. Por algum tempo, discorreram sobre os perigos futuros que ameaçavam a administração do templo.
    As evidências eram tão impalpáveis, quanto o vento ao redor de suas cabeças. O assunto foi tão comentado que até virou piada nas páginas dos jornais, e para desgosto do ministro, o chefe da tesouraria, um antigo parente, há muito fora vice-prefeito numa cidadezinha interiorana do estado.

    Auxiliares e cooperadores iam e vinham como formigas ocupadas, logo se levantaram contra o dirigente.
    - Quanto mais longe se vai... mais inalcançável e distante tudo fica... e a verdade pode estar debaixo do próprio nariz. - Falou um deles.
    Alguns membros do ministério Perpetraram um plano:
    - Vamos pedir um sinal, - disseram - não nos é lícito questionar os sinais.
    Na terceira noite todos tiveram um sonho, e eles se puseram a falar deles... primeiro o ministro.
    Ele se pôs de pé, estava confuso com o sonho, deixou escapar um suspiro... diz ter sonhado com o presbítero despencando do alto da sacada do templo, junto ao corpo, uma carta explicara o motivo do suicídio. Mas foi incapaz de explicar o sentido simbólico do sonho.

    Depois foi a vez do dirigente que, segundo, sonhara com o tesoureiro saindo para uma vigília no campo, e estava metido até as orelhas num poço de areia movediça, enquanto suplicava por ajuda. Também não pode traduzir o sonho.
    Um missionário relatou ter sonhado com Judas Iscariotes enforcando o ministro com a própria gravata, porque estava entediado com o ministério. Mas não deu garantias de seu sonho, nem tampouco sabia seu significado.

    Um sonho sucedia outro sonho, e de sonho em sonho a realidade se mostrou indispensável. Embora ninguém pudesse explicar, esperava-se a qualquer momento um sinal. Alguns membros importantes, patrocinadores da causa do templo, vieram procurar o ministro, e não era outra coisa senão o assunto em questão. Dali foram ter com o presbítero, depois com o dirigente.
    - Talvez quem sabe tratar-se-ia de um oportunista, cuja a mão, a sorte afortunada veio apertar. - Dizia um deles.
    - Permita-me dizer que este templo tornou-se um instrumento diabólico. - Disse outro.
    Naturalmente, umas quantas mais perguntas haveriam de ser feitas, o ministério estava na mira dos olhos atentos dos fiéis, que disparavam acusações contra todos. Um desentendimento instalou-se dentro da tesouraria do templo, levando o tesoureiro a ter um colapso nervoso. E eis o que seria de sua vida... morreu de morte repentina.

    Com efeito, a morte causou perplexidade em todos, ainda mais quando boatos circulavam que Deus levara a alma do pobre infeliz, como um sinal de maldição que se abateu sobre o templo. Alguns se convenceram da malfadada história, enquanto outros presumiam uma maquinação dos sonhadores de plantão.
    Então deram por concluído o caso, convencidos por uma ideia distorcida da vida, onde ali, o sonho reina majestoso à quem lhe deseja pedir favor. Nem mesmo a consciência reclama seu sono, nada mais foi sonhado depois daquele dia, fora dito ali que não cabia a eles desprezarem os sinais, lembrou um Diácono.
    Tempos mais tarde só existia uma pálida lembrança do que havia acontecido. E, lá, continuam a vender esperança, com o correr do tempo as coisas cairiam no abismo do esquecimento, e não se falaria mais no assunto... nunca mais.

 

O Céu que nos Protege


Por Everaldo Soares




    O céu se partiu com as luzes de fogos de artifícios, anunciando a chegada de um novo ano. O barulho despertou os moradores das casas, dos edifícios e condomínios de luxo, até os cantos mais longínquos e esquecidos aonde os olhos já não podiam mais alcançar. Salvo o acaso lembrasse das ruas esburacadas nos subúrbios e favelas, por onde transitavam andarilhos e mendigos com suas velhas carroças de papelão e latas de cervejas vazias.

    A confusão e a buzina dos carros despertou Basílio, um morador de rua que dormia preguiçosamente sob o alpendre da igrejinha Santo Antônio de Pádua, num bairro ali próximo.
    A noite era de muito falatório e fumaças de cigarros, Basílio pôs-se de prontidão de pé em frente da igreja enquanto olhava o movimento na praça. Tinha uma barba extravagante e um traje em farrapos, parecia de longe um sumo-sacerdote da miséria em pessoa. Ele estava sozinho, porque seu melhor amigo era seu cachorro e o abandonou por causa do barulho dos fogos.  Dizem, não sem razão ou motivos, que nunca se viu nesse mundo, um pobre andarilho que não tivesse um cão que vivesse da caridade de seu dono. O que faz do mendigo seu senhor.

    Já pela manhã bem cedo, Basílio ficara curioso com o movimento na avenida principal. Estava admirado com o luxo das caravanas, os enfeites das árvores e as pessoas bem vestidas. Uma multidão se vestia de roupas brancas, iam se amontoando como bolas de neve sentadas umas sobre os ombros de outras com garrafas de bebidas nas mãos, pessoas por metros, pessoas por quilômetros, e como se não bastasse iam deixando para trás mesas fartas de restos de comidas intocáveis para serem mais tarde, jogadas no lixo.

    Para Basílio, a fome era uma inimiga que devia ser vencida com a paciência, ela ataca ao meio dia, a meia noite e, com gestos nobres de alguns bons cidadãos de velhas tradições, podia se confraternizar muito bem com uma boa lata de lixo com um pouco de sorte. A fome é uma coisa que para muitos, nem de longe passaria pela cabeça o que seja. Mas ele sabia.

    Basílio não dominava a arte de ler ou escrever, os jornais eram para ele nada mais do que cobertores improvisados. Sendo analfabeto, não entendia a sociedade nem conhecia seus representantes, assim como não tinha religião. Ademais, para Basílio, a política e as religiões, assim como de Deus e o diabo "só tinha ouvido contar histórias". Ouvira isso uma vez no orfanato onde fora deixado aos seis anos de idade pela mãe, que tinha uma doença terminal. O pai morrera vítima de um assalto, o criminoso tinha dezesseis anos. Sua família e seus conhecidos, eram seus companheiros das ruas, eram vultos de homens e mulheres maltrapilhos que iam e vinham depois de percorrerem léguas, por ruas, estradas e caminhos, conduzidos pelo instinto de sobreviver e voltar a ser mendigo mais um dia.

    Ao contrário da sociedade civilizada, onde a primeira vista as pessoas eram normais, mas não se sabia por qual motivo, alguns a vista dos problemas, impelidos por uma visão distorcida da vida, se lançavam de altos edifícios para a morte certa. Outros se jogavam de pontes e viadutos. Ao contrário dessas pessoas, esses habitantes insignificantes reservaram sua morte para o último dia de suas vidas.

   Era uma manhã de outono e uma brisa fria cobria tudo ao redor, Basílio acordou num banco da praça atacado de uma moléstia, uma intoxicação causada pela ingestão de comida estragada. Um transeunte avisou a secretária da igreja a vista da situação que se encontrava o pobre homem ali.
    Nas ruas, as pessoas caminhavam apressadas e preocupadas em resolver toda a sorte de imprevistos que nunca foram resolvidos e que nunca faltariam amanhã. O vento frio diminuía, e Basílio - pobre diabo - ia ficando cada vez mais irreconhecível, os ruídos dos motores iam ficando cada vez mais baixo para ele, a noção de tempo se perdia, suas vistas escureciam até que perdera a consciência.

    Tempos depois se ouviu um leve passo de botas na calçada e a porta de um carro se abriu e Basílio fora colocado em seu interior. A batida da porta cortou a praça e atravessou a igreja e o veículo desceu as ruas movimentadas até desaparecer. Basílio permanecia em silêncio, cada segundo... cada minuto.
   
    Ninguém mais o viu depois desse fatídico dia, seu vulto surdo-mudo desapareceu da multidão, das praças, das ruas. Os jornais não davam notícias dos mendigos, como falavam de horóscopo e meteorologia. No entanto, um inciso pronunciamento da Câmara dos vereadores, ponderou o assunto num certo momento. E o assunto não era outro, senão os males que afligiam os moradores das ruas e favelas. A comissão de direitos humanos também estava de prontidão, tudo isso a mais de meio caminho das eleições.

    "Os indigentes e viciados são, de certa maneira, uma responsabilidade social e devemos tratar deste mal", disse um renomado político de modo vulgar e carismático, o que atraía mais ainda a atenção de seus eleitores. "Não basta ser um bom político, há de ter de vencer os demônios", dizia um diácono pentecostal enquanto vendia seus versos para uma multidão de fiéis. Parecia que ambos estavam determinados a promover a felicidade do povo, cada um a sua maneira. Ou esmagando as pessoas em nome de suas crenças, ou escravizando-as com palavras e promessas como se só para isso tivessem nascidos, como se só para isso tivessem vivido cada segundo... cada minuto. Cada um encerrado em si mesmo, como mendigos na multidão.

 

Noite Breve e Delírio


Por Everaldo Soares



   
Brandon entrou em casa exaltado, trancou a porta e se dirigiu para a cozinha, onde Jéssica, sua esposa, brincava com o pequeno Peter. Era o primeiro filho do casal e tinha pouco mais de dois anos de idade.
    Ele saltou sobre o garoto como se agarrasse uma bola de futebol, depois ergueu Peter acima da altura dos ombros, e olhou para o filho com um brilho peculiar nos olhos.
    - Brandon...! Tome cuidado com o menino - dizia Jéssica - lembre-se que Peter está em tratamento, e devemos ter o máximo de cuidado com ele.

    O pequeno Peter era o centro das atenções da família Monroy. O pai, empresário publicitário, e devoto assíduo do trabalho, agora dividia seu tempo entre a família e os negócios
    Uma das razões era que Peter, desde que nascera, tinha uma longa agenda de fisioterapia respiratória. Isso tomava boa parte do tempo do casal que, ambos, juntos participavam das sessões na maioria das vezes. Brandon chegou a parar de fumar em favor do progresso de recuperação do filho.
    Rara as vezes que Brandon não conseguia compartilhar com Jéssica as sessões de fisioterapia, por razões profissionais.
    Momentos depois Brandon já estava sentado no sofá da sala, com Peter no colo assistindo Tevê. Mera coincidência, o canal transmitia um documentário cientifico.
 
    - Bem-vindo ao maravilhoso mundo de fantasias Peter. - Disse num tom jocoso para provocar a esposa que, apesar de não ser tão letrada como o marido, amava a ficção e o realismo fantástico.
    Ora, ora, - dizia Jéssica dirigindo-se para o marido - não é necessário dizer aqui que as coisas que existem neste mundo, existem por existir, e não necessariamente porque alguém acredita que elas existem.
    - Você acredita em Deus Brandon? - Perguntou ela.
    - É claro. E você sabe disso. - Ele se mostrou um tanto resignado com a pergunta da esposa.
    - Pois bem, acredite, é bastante improvável que se leve Deus para um laboratório de pesquisas, e prove a sua existência por métodos científicos materiais, como fazem os materialistas.
    Apesar do ceticismo, Brandon admirava a mulher que, para ela, o estranho não era estranho, era só desconhecido, assim como as ondas de rádio foram um dia, e hoje deixaram de ser. Ocorreu a ele, lembrar que Jéssica costumava dizer que, a maior doença do século vinte um era o consumismo. A única coisa estranha para ela, era ver pessoas tomando decisões erradas sob pressão da publicidade e propaganda, e comprando coisas desnecessárias, para depois se lamentarem como Madalenas arrependidas.

    Brandon tentou convencer a esposa a trabalhar com ele depois que o filho se recuperasse, mas ela recusou, disse que queria seguir a carreira do pai, e iria terminar a faculdade de biologia.
    O pai, biólogo e pesquisador, também estudara arqueologia na juventude, Jéssica passava a maior parte do tempo em sua modesta biblioteca, e cresceu lendo H.G. Wells, Jùlio Verne, Planck e Einsten.
    A física quântica, ali há mais coisas estranhas do que Jéssica possa imaginar, pensava Brandon, universos paralelos, linhas de tempo...os cientistas tem teorizado teorias e mais teorias...e por fim, caem em paradoxos inexplicáveis. Mas a esposa insistia e Brandon apoiava em tudo o que ela fazia.
    Certo dia Jéssica deslocou o ombro na garagem de casa quando descia pelas escadas e caiu. Brandon não permitiu que a esposa dirigisse até que se sentisse melhor, então ficou mais ausente do trabalho.

    Numa tarde, o telefone tocou no escritório da empresa, Brandon estava numa reunião importante, com clientes importantes. Jéssica disse que estava tudo bem e insistiu para que o marido continuasse com o trabalho, e que estava em condições de dirigir. Ele pediu desculpas para os clientes e disse que tinha assuntos de família para resolver, e saiu educadamente.
    Na outra semana ocorreu o mesmo episódio, mas Brandon estava lá. Com um gesto sutil ele pegava Peter nos braços, não queria piscar os olhos com medo de perder o filho de vista. Havia tanta inocência naquele sorriso, que valia a pena largar tudo para estar ali.
    E com isso as horas... os dias... e os meses iam passando, e Brandon e Jéssica aceitaram seus destinos, e Peter ficou curado. O pai que não bebia, bebeu de tanta felicidade naquele dia, depois balbuciou algumas palavras e dormiu com o filho nos braços.
    E assim, o tempo passou, e a medida que o tempo passa...para lá caminha os anos... e Peter tinha dezesseis anos.

    Era tarde da noite de sexta-feira, e Brandon se achava ainda no escritório, os funcionários já haviam ido embora. Ele permanecia na frente do computador finalizando algum trabalho importante. Lá fora, além das janelas, um vendaval terrível sacudiam os fios de alta tensão, chovia muito e os trovões eram assustadores.
    Então Brandon resolveu ligar para a esposa e dizer que iria se atrasar um pouco. Desta feita, concluiu o trabalho, fechou o escritório e se dirigiu para o estacionamento de carros.
    No caminho para casa, Brandon estava absorto entre uma ideia e outra, uma agitação começou a apoderar-se dele, talvez fosse a tempestade, não sabia. Quando virou uma das esquinas da cidade, não muito longe do trabalho, um relâmpago intenso explodiu a poucos metros de seu carro.
    Sem motivo aparente o carro apagou as luzes, e o motor parou de funcionar, instantes depois, ele estava com o veículo parado em frente a um supermercado, com os vidros do carro todo fechado. A chuva e o vento avançavam espantosamente, ele tentou usar o aparelho celular mas estava completamente apagado, não havia ninguém na rua, ele olhou para o relógio de pulso os ponteiros estavam parados indicando meia-noite.

    A cidade parecia um deserto vazio, enquanto pensava em como avisar a mulher, o carro estremeceu com o impacto de um pequeno outdoor que atravessou o para-brisa dianteiro, e por pouco não o atingiu. A chuva e o vento frio invadiram o interior do veículo, obrigando Brandon a buscar abrigo sob a cobertura escura de um velho armazém.
    O nervosismo cedeu lugar a um susto repentino, quando ele viu o vulto de um homem. Não tinha meios de vê-lo com muita clareza, mas a medida que seu olhos foram se acostumando com a escuridão, viu que se tratava de um mendigo deitado no chão áspero e sujo. Do seu lado, um cão magro e algumas latas de lixo lhe faziam companhia.
    O vento soprava cada vez mais frio, então ele resolveu se acomodar atrás do que parecia ser um contêiner de recicláveis, sentou ali com a cabeça sobre os joelhos, não havia nenhum perigo, apenas a modesta companhia de um andarilho e seu cão fiel.
    Um pensamento sussurrou na cabeça de Brandon, dizia ter vagas recordações do lugar onde estava, mas isso tinha pouca importância agora. Permanecia sentado... os olhos fechados... alheio... silencioso.

    - Um brinde a Mag...
    Brandon despertou assustado com o mendigo, não parecia estranho o som da voz do homem que ele jurava nunca ter visto.
    - Um brinde a Mag meu amigo... e um feliz natal.
    O mendigo agora sentado, segurava na mão uma garrafa de bebida e estendia os braços para Brandon, como se o convidasse para um drink. Ele tinha a impressão que o outro estava embriagado, mesmo assim agradeceu o pobre homem que, de certo, confundira Brandon com algum morador de rua. Talvez quisesse conversar, por isso fez um comentário qualquer.
    - Há caminhos largos e estreitos, mas todos.. todos correm para o mesmo horizonte.
    Disse o mendigo por fim, sua voz era fraca e seu corpo tremia, mas Brandon podia ouvi-lo com uma clareza cristalina. Julgou que o pobre coitado estivesse delirando. Ele continuou:
    - O chapéu era mais importante do que a própria cabeça, e foi levado pelo vento no caminho.
    Dizia o mendigo de semblante taciturno. Virou a garrafa de bebida na boca, depois a segurou entre os joelhos e calou-se.
    Brandon olhou curioso para o homem maltrapilho à sua frente, antes mesmo de perguntar foi interrompido.
    - A alma é triste se escolhe um caminho triste.
    Voltou a beber e continuou a dizer coisas sem sentido, ou talvez fizesse algum sentido para ele próprio. Seguiu um minuto de silêncio, depois voltou a falar:
    - Quanto mais avançamos pelo caminho, há mais pedras para se retirar... pedras que nós mesmos colocamos lá.
    Brandon quebrou o silêncio movido pela curiosidade.
    - Por que está me dizendo estas coisas senhor? Eu não entendo o que quer dizer.
    - Estou reescrevendo uma história - replicou o mendigo.

    A abordagem da linguagem era coisa comum na vida e no trabalho de Brandon, uma vez que ele próprio vivia da comunicação e interação entre pessoas. Tentou uma conversa animada com o seu interlocutor, mesmo acreditando que o outro estava acometido por uma demência, promovida pelo uso excessivo de álcool. Perguntou sobre a natureza da história, e que podia confidenciar à ele, se assim desejasse.
    - Era uma história de amor, ah, esqueça isso meu caro. É fato que ele já nem sabe mais o que é amor.
    Assim que terminou de falar, voltou a beber.
    - Quem era esse homem... ele tinha um nome?
    O mendigo olhou indiferente para Brandon, depois respondeu num tom de protesto.
    - A vida faz pender o braço da balança para o lado da morte - disse levando a garrafa na boca, depois continuou - sobre os ombros da vida, repousa a morte, é tudo o que eu sei.

    Ele tinha a certeza, de que o pobre mendigo era mais uma simples alma desprovida de razão, isso explicava a estranheza de seus sentimentos e palavras.
    - A razão não pode explicar tudo o que acontece no mundo, meu amigo.
    Ficou surpreso com a afirmação do homem que parecia ler seus pensamentos. Tentou falar mas foi outra vez interrompido com uma pergunta.
    - Você joga cartas? ou...talvez...
    Abriu uma das mãos e mostrou o que parecia serem dados de brinquedo.
    - Não senhor, eu não gosto muito de jogos. - Explicou.

    Ele titubeou até Brandon e parou bem à sua frente, tinha o olhar intenso e penetrante, assim como o olhar de Brandon. Sentou bem próximo dele. Havia algo nele que sem dúvidas chamava a sua atenção, sentiu um estranho estado de espirito, mas não sentia medo. Apenas ouvia um sussurro delirante e sutil, que emanavam das palavras daquele homem.
    - Não tem importância - disse o mendigo - a vida é um jogo meu amigo. As cartas estão viradas para baixo e os dados são lançados para cima.
    - A vida considera todas as possibilidades, não há cartas nem avisos, só escolhas certas ou erradas a fazer.
    - Mag veio ter comigo um dia, e me perguntou o que eu pensava sobre ela sair sozinha para dirigir. Não dirigia muito bem, na verdade era muito insegura.
    Falava encarando Brandon que o encarava de volta, absorto em pensamentos.
    - Eu deixei que Mag escolhesse, caso mudasse de ideia, ligasse para mim em meu escritório.
    Brandon ouvia o misterioso mendigo, que trazia nas mãos o que parecia ser um velho jornal. Havia ali, guardado em suas páginas, edições antigas de poesias, tratados de casamento, funerais, e notícias obscuras de outros tempos passados.
    - Aqui, - dizia o homem - neste diário amassado, está o nome de quem você pergunta. E quem era ele? Era aquilo que as palavras dizem o que foi, nada mais.
    - Vê este jornal, meu amigo, - folheou algumas páginas - há mais propagandas aqui do que assuntos relevantes. Elas são como cercas de arame farpado. Mag costumava dizer que chega a ser como feitiço, para quem se deixa enfeitiçar por elas, e todo feitiço um dia se volta contra o feiticeiro.

    Por um momento Brandon concebeu um breve pensamento infeliz, quando viu um dos anúncios comerciais, um entre cinco anúncios numa mesma calçada, debruçado sobre seu carro. Parecia coincidência, levando em consideração as palavras do mendigo.
    - São letras, cores e símbolos, e lâmpadas halogenas. Mas estão sempre lá para iludir pessoas. - Dizia o pobre homem.
    Ele foi para junto de Brandon e sentou ao seu lado, colocou o jornal entre as pernas e ascendeu um cigarro. Em seguida colocou a caixa de fósforos no chão, junto a garrafa de bebida.
    - Quem era Mag? Inquiriu Brandon, curioso.
    - Mag saiu de carro com o filho para ir comprar um Hambúrguer na avenida central.
    - E o que tem de errado nisso?
    - Tem um palhaço amarelo de cabelos vermelhos na hamburgueria.
    - Um o que... ?! - Brandon não entendia a resposta embaraçosa.
    - Todas as crianças amam o palhaço amarelo... mas o palhaço está pouco se lixando para elas. Nada há para ver ou ser visto nele, é apenas um palhaço que gosta de enganar crianças. - Calou-se novamente.

    Brandon ponderou um instante sobre o que acabara de ouvir. Olhou bem para o homem de rosto coberto pela espessa barba, e cabelos longos e negros, não o reconheceria por mais que tentasse.
    Quase desvanecido, o mendigo ainda podia ser ouvido, e sua voz era clara e serena.
    - Falei muito tempo, e você nem sequer perguntou de onde eu venho, ou meu nome. Sem que houvesse tempo para uma resposta, ele continuou seu discurso.
    - Nem de um lugar nem de outro, nem de buscar liberdade, nem alegria, nem de renunciar qualquer aflição deste mundo. E quanto são os mundos... e o mundo que me espera, como será? Não vale a pena sair correndo por ai, numa maratona sem linha de chegada.
    - Apenas peregrino por esta ou aquela cidade, e sei que percorro sempre os mesmos caminhos, as vezes solitários.

    - Mas é preciso caminhar... nada há para temer no caminho, pois quem habita as areias paradas deste deserto, são os ventos que assentam a poeira suja sobre meus pés. De quando em quando, uma brisa forte faz esvoaçar o chapéu que é levado pelo vento.
    Assim que terminou de falar, ficou em silêncio absoluto, com a cabeça pendida sobre um dos ombros... incapaz de dizer uma única palavra.
    Brandon fitou o pobre coitado por um tempo, depois tomado de uma curiosidade espantosa, pegou cuidadosamente o jornal no colo do mendigo adormecido. Começou a virar as páginas amassadas, mas não conseguia enxergar uma letra sequer.
    Riscou cautelosamente um fósforo e leu: 'vinte e quatro de dezembro de 2003, quinta-feira'

    Por que alguém guardaria um jornal por tanto tempo? Brandon se perguntou enquanto riscava outro palito de fósforo. Continuou folheando até o relatório policial. A polícia informou que nesta quarta-feira 23, a dona de casa Mag... (...) a frase estava ilegível. Continuou lendo:...de vinte e oito anos , foi encontrada morta dentro de seu veículo na avenida central da cidade. Testemunhas alegam que ela perdeu a direção e, fatalmente, bateu contra um poste de iluminação. O filho de pouco mais de três anos que estava com ela, chegou a ser socorrido e levado ao hospital mais próximo, mas não aguentou os ferimentos e também morreu.

    Brandon continuava a revirar as folhas e, de repente, percebeu que eram dois jornais. Abriu uma das páginas como se abrisse uma caixa de pandora, por onde seus sentimentos mais obscuros pudessem escapar. As palavras desbotadas assombravam o espírito de Brandon enquanto ele lia... Publicitário conhecido foge de clínica psiquiátrica no quinto mês de internação. A família de Brandon Monroy disse que depois da morte da esposa, Magda Monroy, e de seu filho, Peter, em dezembro do ano passado, Brandon teria fechado a empresa e começou a beber compulsivamente.
    A mãe do empresário contou que Brandon era um pai dedicado e amava muito a esposa. Ele não aceitou a perda da família, e se entregou à bebida e às drogas. Teria sido internado contra sua própria vontade, segundo amigos. Depois de conseguir fugir, ele nunca mais foi visto, a família cogita a possibilidade de suicídio, mas até agora a polícia nunca confirmou essa informação.

    Brandon sentiu a ausência total de forças nas mãos, o jornal caíra ao lado dele, depois seguiu-se um silêncio acompanhado de pavor. Os pensamentos cederam lugar a um vazio, como se aquilo fosse um sinal de aviso.
    De repente ele chora e grita o nome de Jéssica e Peter, enquanto ouve uma voz na cabeça. A voz chama por Brandon, entre sussurros e silêncio ele ouvia seu nome se repetindo como num gravador. A voz passou para seus ouvidos e soava cada vez mais forte... sempre chamando por Brandon.
    Subitamente foi despertado com uma mão tocando seu ombro, e uma voz gritando: -Brandon... Sr Brandon!!!
    A tênue luz da manhã se fez revelar, e ele viu um policial agachado sobre os calcanhares na sua frente, um outro estava de pé e falava no rádio. Aos poucos, foi percebendo o movimento de pessoas e carros passando.
    Reparou que estava sentado na frente de uma loja de veículos, e estava muito confuso.
    - Sr. Brandon, - dizia o policial segurando os documentos de Brandon nas mãos - sua esposa registrou queixa de seu desaparecimento nesta madrugada, logo depois da meia noite. Aquele carro é do senhor?
    Disse apontando para o veículo com um painel caído sobre seu para brisa. Ele olhou para os lados e não viu o mendigo, nem seu cão, nem latas de lixo. Estava só, sentado no chão de granito com as costas apoiadas numa das vitrines da loja. Ele olhou para o policial e assentiu positivamente.

    - Venha conosco senhor, - disse o policial ajudando ele a se levantar - talvez tenha que dar uma passadinha na delegacia antes de ir para casa. Eu entendo que há dias em que bebemos e perdemos a hora, quando não a casa. - Disse o outro insinuando que Brandon estivesse bêbado.
    - O que eu não entendo, - continuou - foi ter passado três vezes nesta mesma avenida, e não ter visto esse carro nestas condições.
    Seguiram pela calçada e Brandon insistia em olhar para trás a procura de um mendigo e seu cão, mas não havia mais nada ali, só uma sensação estranha, misturada com a sensação feliz de ir para casa... e rever a família.